Ainda à volta do ter a ver/ter que ver/ter a haver...
[Pergunta] A pergunta já foi respondida, eu sei.
Constato, todavia, que, mesmo depois de respondida, continuou a ser a pergunta mais vezes repetida no Ciberdúvidas.
O assunto parece, mesmo, ter-se tornado algo fastidioso para o Sr. Dr. José Neves Henriques, que terá perdido o jeito e a paciência para atender às esforçadas fundamentações das dúvidas de perguntadores mais ignaros.
Na pergunta por mim formulada, no sentido de saber da razão do emprego do verbo "ver" na frase «isto nada tem a (ou que...) ver com aquilo», fiz o contraponto com a possibilidade do emprego do verbo "haver", desta forma buscando tanto a razão do emprego do primeiro como a da incorrecção na utilização do segundo.
Era óbvio, na pergunta, que não estava em causa a querela do "a" ver/"que" ver.
Tal como é óbvio que a razão da utilização do verbo "ver" não é o facto de se não poder aplicar o verbo "haver"... «por ser caso completamente diferente». Outra haverá, mas o Ciberdúvidas ainda não a expressou.
Contornando mais uma vez a questão, o Sr. Dr. alinhou dois simplistas exemplos em que "haver" significa "receber", como se, constatando o óbvio, a questão ficasse esclarecida.
Concluiu o Sr. Dr. que, por serem "não frases" (seja isto o que for...) as aduzidas para a fundamentação da dúvida e expressão da sua substância, não valeria a pena comentá-las, assim sonegando mais uma vez – não pecando por excesso de elegância na forma – o comentário aos argumentos que justificam o pedido de esclarecimento. Desta forma foi sonegada também, e mais uma vez, a justificação, pela positiva, para a utilização do verbo "ver" (o facto de ser uma expressão também utilizada noutras línguas, não chega).
Sem pretender polemizar (que os meus conhecimentos o não permitem), apelo para que o Ciberdúvidas, com a seriedade intelectual que o tem afirmado, responda de uma vez por todas a esta pergunta:
Qual dos significados ou sentidos possíveis do verbo "ver" justificam a sua utilização na frase «isto nada tem que ver com aquilo»?
Desde já obrigado.
Constato, todavia, que, mesmo depois de respondida, continuou a ser a pergunta mais vezes repetida no Ciberdúvidas.
O assunto parece, mesmo, ter-se tornado algo fastidioso para o Sr. Dr. José Neves Henriques, que terá perdido o jeito e a paciência para atender às esforçadas fundamentações das dúvidas de perguntadores mais ignaros.
Na pergunta por mim formulada, no sentido de saber da razão do emprego do verbo "ver" na frase «isto nada tem a (ou que...) ver com aquilo», fiz o contraponto com a possibilidade do emprego do verbo "haver", desta forma buscando tanto a razão do emprego do primeiro como a da incorrecção na utilização do segundo.
Era óbvio, na pergunta, que não estava em causa a querela do "a" ver/"que" ver.
Tal como é óbvio que a razão da utilização do verbo "ver" não é o facto de se não poder aplicar o verbo "haver"... «por ser caso completamente diferente». Outra haverá, mas o Ciberdúvidas ainda não a expressou.
Contornando mais uma vez a questão, o Sr. Dr. alinhou dois simplistas exemplos em que "haver" significa "receber", como se, constatando o óbvio, a questão ficasse esclarecida.
Concluiu o Sr. Dr. que, por serem "não frases" (seja isto o que for...) as aduzidas para a fundamentação da dúvida e expressão da sua substância, não valeria a pena comentá-las, assim sonegando mais uma vez – não pecando por excesso de elegância na forma – o comentário aos argumentos que justificam o pedido de esclarecimento. Desta forma foi sonegada também, e mais uma vez, a justificação, pela positiva, para a utilização do verbo "ver" (o facto de ser uma expressão também utilizada noutras línguas, não chega).
Sem pretender polemizar (que os meus conhecimentos o não permitem), apelo para que o Ciberdúvidas, com a seriedade intelectual que o tem afirmado, responda de uma vez por todas a esta pergunta:
Qual dos significados ou sentidos possíveis do verbo "ver" justificam a sua utilização na frase «isto nada tem que ver com aquilo»?
Desde já obrigado.
Manuel Correia :: Tradutor :: Bruxelas, Bélgica
[Resposta] A questão apresentada convida à elaboração de dois tipos de análise: por um lado, a verificação das estruturas em que o verbo ter ocorre; por outro lado, a observação dos valores (ou sentidos) que as respe(c)tivas construções podem transmitir.
Construções em que entra o verbo ter
Centremo-nos apenas nas situações em que o verbo ter surge seguido de preposição (ou pronome relativo) e de um verbo no infinitivo. Na bibliografia consultada são referidas as seguintes possibilidades:
a) ter de, significando obrigação, dever:
1 O caso tem de ser examinado.
b) ter que, a que são atribuídos dois valores: fim, que é referido mais vezes e se exemplifica em 2, e obrigatoriedade, como em 3:
2 Tenho que fazer, em que o que é um pronome relativo sem antecedente expresso. Esta frase tem valor final e equivale a tenho coisas para fazer.
3 O caso tem que ser examinado. (= O caso tem de ser examinado.) Nesta situação, a frase transmite uma ideia de obrigação, de dever, e o que esvazia-se de sentido, assumindo a função de elo de ligação. Note-se ainda que se explicitarmos o complemento dire(c)to de fazer na frase 2, acima, o sentido passa igualmente a ser de obrigatoriedade: «Tenho que fazer o jantar.» (= Tenho de fazer o jantar.)
c) ter para, mais raro, com valor final, que surge em contextos como o que explicita o sentido da frase 2, ou em situações próximas da que se apresenta em 4:
4 «O que tens para fazer?»
d) ter a, equivalente, na maioria dos casos, a ter que com valor final. Acerca desta construção encontrei três referências (salvaguarda-se, claro, a existência de outras a que não tive acesso!): uma surge na 3.ª edição do Prontuário Ortográfico da Língua Portuguesa de Roberto e Sousa, Editorial O Século, Lisboa, que tem na advertência à 3.ª edição a data de Junho de 1950. Os autores consideram inaceitável, por ser um galicismo, o uso de ter a, recomendando em sua substituição ter que; a segunda referência surge no Dicionário de Verbos e Regimes de Francisco Fernandes, Globo, S. Paulo, edição de 1951 onde se refere que ter a equivale a ter que e se exemplifica com frases de Camilo: «Tenho obrigações a cumprir»; «Só tem a lucrar com visitas honrosas.» Pela interpretação dos exemplos creio que os autores atribuem a ter a equivalência com ter que de valor final, próximo do que se verifica no exemplo 2, acima; por último, no Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem de Rodrigo de Sá Nogueira, Clássica Editora, Lisboa, 4.ª edição revista e a(c)tualizada, 1995, diz-se, acerca de ter a: «… temos diante de nós um galicismo de tal modo radicado já, que não creio possível bani-lo da língua».
Do exposto, podemos concluir que a expressão ter a + infinitivo, ainda que continuamente utilizada, não tem sido de aceitação pacífica, nem há cinqu[ü]enta anos, nem hoje, pois se Rodrigo de Sá Nogueira admite a sua entrada na língua graças ao uso generalizado, o mesmo não acontece com os autores dos dicionários que, ao não a referirem, mantêm reservas quanto à sua utilização.
Valores adquiridos por construções com ter a + infinitivo
Assumindo que a estrutura ter a + infinitivo já faz parte da língua portuguesa e que equivale a ter que com valor final, vejamos – ainda que de forma não exaustiva – se esse valor final se mantém em todas as construções, o que implica que possam ser parafraseadas por outras em que entre a preposição para. Tal fa(c)to acontece sem quaisquer limitações, na frase 5:
5 «O ministro tem uma palavra a/que/para dizer sobre o assunto.»
Em 6, se usarmos que, a frase adquire o sentido de obrigatoriedade, distanciando-se do valor de finalidade transmitido por ter a ou ter para, fazendo com que 6.1 tenha significado diferente do que têm 6 e 6.2:
6 «O João tem a pagar 50 euros.»
6.1 «O João tem que pagar 50 euros.» (= «O João tem de pagar 50 euros.»)
6.2 «O João tem 50 euros para pagar.»
Em 7, por seu lado, não é possível a substituição da preposição a, se mantivermos o verbo haver na conjugação pessoal, isto é, admitindo sujeito:
7 «O João tem a haver 50 euros.»
7.1 «O João tem 50 euros para haver.»
7.2 «O João tem que haver 50 euros.»
Se preferirmos, porém, uma construção em que o verbo haver seja impessoal, podemos usar que, substituível por de, mas não podemos usar a, nem para, porque a expressão adquire um sentido de obrigatoriedade:
7.3 «Tem que haver 50 euros nessa gaveta.»
7.4 «Tem de haver 50 euros nessa gaveta.»
7.5 «Tem a haver 50 euros nessa gaveta.»
7.6 «Tem para haver 50 euros nessa gaveta.»
A comparação de 6 com 6.1 e de 7 com 7.2 evidencia que nem sempre ter a é substituível por ter que. Pode verificar-se mudança de significado (6.1) ou agramaticalidade (7.2). Essa limitação é imposta pelas cara(c)terísticas do verbo que se situa à direita da construção, ou seja, o que está no infinitivo. Será esta a razão por que a expressão ter a se tem mantido na língua portuguesa? Terá ela conquistado um espaço próprio? Os estudos efe(c)tuados não nos permitem responder a estas questões.
Voltando às construções em que o verbo no infinitivo é o verbo haver, repare-se que o que torna agramaticais 7.1 e 7.2 é o fa(c)to de o verbo haver ter, aí, um significado que se distancia dos que lhe são mais comuns (ter e existir), adquirindo um sentido próximo de receber, como se depreende se observarmos a boa formação das frases 7.1.1 e 7.2.1:
7.1.1 «O João tem 50 euros para receber.»
7.2.1 «O João tem que receber 50 euros.»
Creio que o sentido de haver se aproxima de receber por analogia com o substantivo homó[ô]nimo, haver, usado na escrituração comercial.
Sintetizando, nas frases analisadas até agora, está subjacente a ide[é]ia de um processo em curso, subentendendo-se um trabalho prévio à a(c)ção enunciada, que, por sua vez, se vai concretizar no futuro. Além disso podemos concluir que o sentido da estrutura ter preposição/relativo + infinitivo é condicionado em parte pelas cara(c)terísticas do verbo que surge à direita, ou seja, o que está no infinitivo. Assim se justifica que em alguns casos, como em 6.1, o sentido mais evidente seja o de obrigatoriedade. Também vimos que se o verbo for haver e estiver conjugado de forma impessoal tem sentido de obrigatoriedade, não podendo ser antecedido de a nem de para. Ter que e ter de são as estruturas que podem veicular a obrigatoriedade, sendo, para o efeito, preferida a expressão ter de. A finalidade é veiculada por ter que, ter para e ter a. No entanto, também aqui se verifica preferência por uma das estruturas: ter que. Este fa(c)to aponta para uma tendência mais global que é a de, havendo várias possibilidades, o uso atribuir especificidades semânticas a cada uma delas, no sentido de evitar a ambigu[ü]idade.
Em todas as situações analisadas acima são estes os dois valores (obrigatoriedade e finalidade) veiculados. No entanto, quando o verbo no modo infinitivo é ver, além de todas as hipóteses já referidas surge uma outra que é, afinal, a que é obje(c)to da questão apresentada pelo consulente e em que toda a expressão significa estar relacionado com.
8 «A exposição tem coisas interessantes que/para ver.» (finalidade)
8.1 «A exposição tem coisas interessantes a ver.»
9 «Tu tens que ver aquele filme.» (obrigatoriedade)
9.1 «Tu tens aquele filme para ver.» (finalidade)
9.2 «Tu tens aquele filme a ver.»
Em 8 e 9 as construções com o verbo ver têm exa(c)tamente os mesmos significados que têm nos exemplos vistos anteriormente e, apesar de ter a também veicular a finalidade, a sua utilização é duvidosa em 8.1 e agramatical em 9.2. Em 10, toda a construção adquire um novo sentido só transmitido por ter a ou ter que:
10 Isto nada tem a/que ver com aquilo. (= «Isto não está relacionado com aquilo.»)
10.1 «Isto nada tem para ver com aquilo.»
10.2 «Isto nada tem de ver com aquilo.»
Conclui-se que ter a/que ver (com) – ou nada ter a/que ver (com) – se distancia dos significados associados às outras construções em que o verbo ter vem seguido de preposição/relativo mais infinitivo. Ao ganhar um sentido global diferente, esta estrutura perde a ide[é]ia de futuro subjacente às outras construções exemplificadas de 1 a 9, embora mantenha a ide[é]ia de a(c)tividade prévia da qual se assume como conclusão. Porém, essa a(c)tividade prévia não se centra sobre uma coisa, mas sobre duas, isto e aquilo, que são analisadas e relacionadas. Mesmo quando a preposição com não está expressa, como acontece em 11 (em que fica subentendida a ide[é]ia de que está em análise um assunto do qual a intervenção de alguém se distancia), estamos perante duas situações que se confrontam, ou relacionam.
– (…)
– Mas isso nada tem a ver!
– (?) Mas isso nada tem que ver!
Os verbos ter e ver surgem afinal em duas construções diferentes: 1 – Ter que ver, que não pode ser substituída por ter a ver e que veicula os sentidos de obrigatoriedade ou de finalidade, dependendo da estrutura global em que a expressão está inserida; 2 – ter a/que ver com, em que ambos os verbos perdem a sua individualidade significativa para, em conjunto, formarem um outro sentido: estar relacionado com, relacionar-se com.
Quer o consulente saber qual dos significados de ver permite esta alteração de sentido. O que escrevo a seguir é uma hipótese explicativa, baseada na minha opinião pessoal.
A linguagem humana apresenta em muitos vocábulos uma cara(c)terística comum: o significado mais antigo de determinadas palavras designa realidades concretas e depois, gradualmente, essas palavras vão assumindo novos sentidos. Se nos lembrarmos do verbo cultivar, compreendemos isto mais facilmente.
A primeira coisa que o homem cultivou foi a terra. Com o tempo, começou também a cultivar o espírito, e a palavra cultura adquiriu um novo sentido, mantendo os dois significados até hoje. A vida de muitas palavras evoluiu assim, quase sempre do concreto para o abstra(c)to, muitas vezes mantendo os diversos significados bem vivos. O que terá acontecido com o verbo ver? Do latim "videre", adquiriu ainda nesta língua dois grandes significados: ver propriamente dito e compreender. Primeiramente, o homem viu com os olhos físicos; descortinou, agarrou o que via de útil, fugiu do que lhe parecia perigoso. Neste processo, também já via com os olhos da mente, que lhe permitiam investir o conhecimento anteriormente adquirido e ajuizar sobre os riscos da situação. Com o tempo, materializou em significados do verbo ver esse processo. E ver passou a ser também compreender, relacionar. Quantas vezes não dizemos «Estou a ver» a quem, do outro lado do fio de um telefone, nos descreve uma paisagem (concreta) ou uma situação (mais abstra(c)ta)?
Ora na expressão ter a/que ver com nem ter significa possuir, nem ver significa olhar, mas ambos, unidos, significam estar relacionado com. A expressão, no seu conjunto, designa uma operação mental através da qual um indivíduo vai a(c)tivar o que conhece acerca de duas coisas e concluir se há ou não pontos de conta(c)to entre elas. O fa(c)to de existir este distanciamento dos significados individuais dos verbos pode estar a provocar uma fixação desta estrutura, que poderá transformar-se numa expressão idiomática. E, nesta situação, ter que e ter a aplicam-se exa(c)tamente com o mesmo significado, o que talvez implique o desaparecimento de uma das expressões. O uso parece estar a preferir ter a, talvez porque ter que se associe preferencialmente à transmissão da finalidade.
Gostaria de referir ainda a dificuldade que alguns falantes manifestam em distinguir ter a ver com de ter a haver. Creio que a proximidade fonética é responsável por esse fenó[ô]meno. Porém, um ouvido minimamente atento distinguirá o a de a ver, pronunciado como os a de para, do a aberto, equivalente ao a de chave, que é fruto da crase que ao falar se faz entre a preposição a e o a do verbo haver – a não realização fonética do h assim o permite! Ter a ver pronunciar-se-á /ter a ver/, como se escreve, e ter a haver soará /ter à ver/… Creio que a semelhança fonética será maior no Brasil, onde o a é sempre aberto e onde as duas expressões a ver e a haver devem soar muito próximas. Desconheço, no entanto, se hoje, no Brasil, estas expressões têm valor próximo do que aqui se expõe. No Novo Aurélio Séc. XXI, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, encontrei a expressão «Não ter nada a ver» a que se atribui no Brasil o sentido de «não ter valor». «Não ter que ver» é apresentada no mesmo dicionário como expressão familiar significando «ser muitíssimo parecido com: o pequeno não tem que ver o pai».
Construções em que entra o verbo ter
Centremo-nos apenas nas situações em que o verbo ter surge seguido de preposição (ou pronome relativo) e de um verbo no infinitivo. Na bibliografia consultada são referidas as seguintes possibilidades:
a) ter de, significando obrigação, dever:
1 O caso tem de ser examinado.
b) ter que, a que são atribuídos dois valores: fim, que é referido mais vezes e se exemplifica em 2, e obrigatoriedade, como em 3:
2 Tenho que fazer, em que o que é um pronome relativo sem antecedente expresso. Esta frase tem valor final e equivale a tenho coisas para fazer.
3 O caso tem que ser examinado. (= O caso tem de ser examinado.) Nesta situação, a frase transmite uma ideia de obrigação, de dever, e o que esvazia-se de sentido, assumindo a função de elo de ligação. Note-se ainda que se explicitarmos o complemento dire(c)to de fazer na frase 2, acima, o sentido passa igualmente a ser de obrigatoriedade: «Tenho que fazer o jantar.» (= Tenho de fazer o jantar.)
c) ter para, mais raro, com valor final, que surge em contextos como o que explicita o sentido da frase 2, ou em situações próximas da que se apresenta em 4:
4 «O que tens para fazer?»
d) ter a, equivalente, na maioria dos casos, a ter que com valor final. Acerca desta construção encontrei três referências (salvaguarda-se, claro, a existência de outras a que não tive acesso!): uma surge na 3.ª edição do Prontuário Ortográfico da Língua Portuguesa de Roberto e Sousa, Editorial O Século, Lisboa, que tem na advertência à 3.ª edição a data de Junho de 1950. Os autores consideram inaceitável, por ser um galicismo, o uso de ter a, recomendando em sua substituição ter que; a segunda referência surge no Dicionário de Verbos e Regimes de Francisco Fernandes, Globo, S. Paulo, edição de 1951 onde se refere que ter a equivale a ter que e se exemplifica com frases de Camilo: «Tenho obrigações a cumprir»; «Só tem a lucrar com visitas honrosas.» Pela interpretação dos exemplos creio que os autores atribuem a ter a equivalência com ter que de valor final, próximo do que se verifica no exemplo 2, acima; por último, no Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem de Rodrigo de Sá Nogueira, Clássica Editora, Lisboa, 4.ª edição revista e a(c)tualizada, 1995, diz-se, acerca de ter a: «… temos diante de nós um galicismo de tal modo radicado já, que não creio possível bani-lo da língua».
Do exposto, podemos concluir que a expressão ter a + infinitivo, ainda que continuamente utilizada, não tem sido de aceitação pacífica, nem há cinqu[ü]enta anos, nem hoje, pois se Rodrigo de Sá Nogueira admite a sua entrada na língua graças ao uso generalizado, o mesmo não acontece com os autores dos dicionários que, ao não a referirem, mantêm reservas quanto à sua utilização.
Valores adquiridos por construções com ter a + infinitivo
Assumindo que a estrutura ter a + infinitivo já faz parte da língua portuguesa e que equivale a ter que com valor final, vejamos – ainda que de forma não exaustiva – se esse valor final se mantém em todas as construções, o que implica que possam ser parafraseadas por outras em que entre a preposição para. Tal fa(c)to acontece sem quaisquer limitações, na frase 5:
5 «O ministro tem uma palavra a/que/para dizer sobre o assunto.»
Em 6, se usarmos que, a frase adquire o sentido de obrigatoriedade, distanciando-se do valor de finalidade transmitido por ter a ou ter para, fazendo com que 6.1 tenha significado diferente do que têm 6 e 6.2:
6 «O João tem a pagar 50 euros.»
6.1 «O João tem que pagar 50 euros.» (= «O João tem de pagar 50 euros.»)
6.2 «O João tem 50 euros para pagar.»
Em 7, por seu lado, não é possível a substituição da preposição a, se mantivermos o verbo haver na conjugação pessoal, isto é, admitindo sujeito:
7 «O João tem a haver 50 euros.»
7.1 «O João tem 50 euros para haver.»
7.2 «O João tem que haver 50 euros.»
Se preferirmos, porém, uma construção em que o verbo haver seja impessoal, podemos usar que, substituível por de, mas não podemos usar a, nem para, porque a expressão adquire um sentido de obrigatoriedade:
7.3 «Tem que haver 50 euros nessa gaveta.»
7.4 «Tem de haver 50 euros nessa gaveta.»
7.5 «Tem a haver 50 euros nessa gaveta.»
7.6 «Tem para haver 50 euros nessa gaveta.»
A comparação de 6 com 6.1 e de 7 com 7.2 evidencia que nem sempre ter a é substituível por ter que. Pode verificar-se mudança de significado (6.1) ou agramaticalidade (7.2). Essa limitação é imposta pelas cara(c)terísticas do verbo que se situa à direita da construção, ou seja, o que está no infinitivo. Será esta a razão por que a expressão ter a se tem mantido na língua portuguesa? Terá ela conquistado um espaço próprio? Os estudos efe(c)tuados não nos permitem responder a estas questões.
Voltando às construções em que o verbo no infinitivo é o verbo haver, repare-se que o que torna agramaticais 7.1 e 7.2 é o fa(c)to de o verbo haver ter, aí, um significado que se distancia dos que lhe são mais comuns (ter e existir), adquirindo um sentido próximo de receber, como se depreende se observarmos a boa formação das frases 7.1.1 e 7.2.1:
7.1.1 «O João tem 50 euros para receber.»
7.2.1 «O João tem que receber 50 euros.»
Creio que o sentido de haver se aproxima de receber por analogia com o substantivo homó[ô]nimo, haver, usado na escrituração comercial.
Sintetizando, nas frases analisadas até agora, está subjacente a ide[é]ia de um processo em curso, subentendendo-se um trabalho prévio à a(c)ção enunciada, que, por sua vez, se vai concretizar no futuro. Além disso podemos concluir que o sentido da estrutura ter preposição/relativo + infinitivo é condicionado em parte pelas cara(c)terísticas do verbo que surge à direita, ou seja, o que está no infinitivo. Assim se justifica que em alguns casos, como em 6.1, o sentido mais evidente seja o de obrigatoriedade. Também vimos que se o verbo for haver e estiver conjugado de forma impessoal tem sentido de obrigatoriedade, não podendo ser antecedido de a nem de para. Ter que e ter de são as estruturas que podem veicular a obrigatoriedade, sendo, para o efeito, preferida a expressão ter de. A finalidade é veiculada por ter que, ter para e ter a. No entanto, também aqui se verifica preferência por uma das estruturas: ter que. Este fa(c)to aponta para uma tendência mais global que é a de, havendo várias possibilidades, o uso atribuir especificidades semânticas a cada uma delas, no sentido de evitar a ambigu[ü]idade.
Em todas as situações analisadas acima são estes os dois valores (obrigatoriedade e finalidade) veiculados. No entanto, quando o verbo no modo infinitivo é ver, além de todas as hipóteses já referidas surge uma outra que é, afinal, a que é obje(c)to da questão apresentada pelo consulente e em que toda a expressão significa estar relacionado com.
8 «A exposição tem coisas interessantes que/para ver.» (finalidade)
8.1 «A exposição tem coisas interessantes a ver.»
9 «Tu tens que ver aquele filme.» (obrigatoriedade)
9.1 «Tu tens aquele filme para ver.» (finalidade)
9.2 «Tu tens aquele filme a ver.»
Em 8 e 9 as construções com o verbo ver têm exa(c)tamente os mesmos significados que têm nos exemplos vistos anteriormente e, apesar de ter a também veicular a finalidade, a sua utilização é duvidosa em 8.1 e agramatical em 9.2. Em 10, toda a construção adquire um novo sentido só transmitido por ter a ou ter que:
10 Isto nada tem a/que ver com aquilo. (= «Isto não está relacionado com aquilo.»)
10.1 «Isto nada tem para ver com aquilo.»
10.2 «Isto nada tem de ver com aquilo.»
Conclui-se que ter a/que ver (com) – ou nada ter a/que ver (com) – se distancia dos significados associados às outras construções em que o verbo ter vem seguido de preposição/relativo mais infinitivo. Ao ganhar um sentido global diferente, esta estrutura perde a ide[é]ia de futuro subjacente às outras construções exemplificadas de 1 a 9, embora mantenha a ide[é]ia de a(c)tividade prévia da qual se assume como conclusão. Porém, essa a(c)tividade prévia não se centra sobre uma coisa, mas sobre duas, isto e aquilo, que são analisadas e relacionadas. Mesmo quando a preposição com não está expressa, como acontece em 11 (em que fica subentendida a ide[é]ia de que está em análise um assunto do qual a intervenção de alguém se distancia), estamos perante duas situações que se confrontam, ou relacionam.
– (…)
– Mas isso nada tem a ver!
– (?) Mas isso nada tem que ver!
Os verbos ter e ver surgem afinal em duas construções diferentes: 1 – Ter que ver, que não pode ser substituída por ter a ver e que veicula os sentidos de obrigatoriedade ou de finalidade, dependendo da estrutura global em que a expressão está inserida; 2 – ter a/que ver com, em que ambos os verbos perdem a sua individualidade significativa para, em conjunto, formarem um outro sentido: estar relacionado com, relacionar-se com.
Quer o consulente saber qual dos significados de ver permite esta alteração de sentido. O que escrevo a seguir é uma hipótese explicativa, baseada na minha opinião pessoal.
A linguagem humana apresenta em muitos vocábulos uma cara(c)terística comum: o significado mais antigo de determinadas palavras designa realidades concretas e depois, gradualmente, essas palavras vão assumindo novos sentidos. Se nos lembrarmos do verbo cultivar, compreendemos isto mais facilmente.
A primeira coisa que o homem cultivou foi a terra. Com o tempo, começou também a cultivar o espírito, e a palavra cultura adquiriu um novo sentido, mantendo os dois significados até hoje. A vida de muitas palavras evoluiu assim, quase sempre do concreto para o abstra(c)to, muitas vezes mantendo os diversos significados bem vivos. O que terá acontecido com o verbo ver? Do latim "videre", adquiriu ainda nesta língua dois grandes significados: ver propriamente dito e compreender. Primeiramente, o homem viu com os olhos físicos; descortinou, agarrou o que via de útil, fugiu do que lhe parecia perigoso. Neste processo, também já via com os olhos da mente, que lhe permitiam investir o conhecimento anteriormente adquirido e ajuizar sobre os riscos da situação. Com o tempo, materializou em significados do verbo ver esse processo. E ver passou a ser também compreender, relacionar. Quantas vezes não dizemos «Estou a ver» a quem, do outro lado do fio de um telefone, nos descreve uma paisagem (concreta) ou uma situação (mais abstra(c)ta)?
Ora na expressão ter a/que ver com nem ter significa possuir, nem ver significa olhar, mas ambos, unidos, significam estar relacionado com. A expressão, no seu conjunto, designa uma operação mental através da qual um indivíduo vai a(c)tivar o que conhece acerca de duas coisas e concluir se há ou não pontos de conta(c)to entre elas. O fa(c)to de existir este distanciamento dos significados individuais dos verbos pode estar a provocar uma fixação desta estrutura, que poderá transformar-se numa expressão idiomática. E, nesta situação, ter que e ter a aplicam-se exa(c)tamente com o mesmo significado, o que talvez implique o desaparecimento de uma das expressões. O uso parece estar a preferir ter a, talvez porque ter que se associe preferencialmente à transmissão da finalidade.
Gostaria de referir ainda a dificuldade que alguns falantes manifestam em distinguir ter a ver com de ter a haver. Creio que a proximidade fonética é responsável por esse fenó[ô]meno. Porém, um ouvido minimamente atento distinguirá o a de a ver, pronunciado como os a de para, do a aberto, equivalente ao a de chave, que é fruto da crase que ao falar se faz entre a preposição a e o a do verbo haver – a não realização fonética do h assim o permite! Ter a ver pronunciar-se-á /ter a ver/, como se escreve, e ter a haver soará /ter à ver/… Creio que a semelhança fonética será maior no Brasil, onde o a é sempre aberto e onde as duas expressões a ver e a haver devem soar muito próximas. Desconheço, no entanto, se hoje, no Brasil, estas expressões têm valor próximo do que aqui se expõe. No Novo Aurélio Séc. XXI, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, encontrei a expressão «Não ter nada a ver» a que se atribui no Brasil o sentido de «não ter valor». «Não ter que ver» é apresentada no mesmo dicionário como expressão familiar significando «ser muitíssimo parecido com: o pequeno não tem que ver o pai».
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