Saturday, 11 January 2014

Posse v. detenção



No direito civil alemão, por exemplo, não subsiste a diferença entre a posse direta e a mera detenção (bloße Detention). O projeto inicial do BGB chegou a manter a diferença entre posse e retenção (Innehabung), a qual acabou por ser definitivamente substituída pela dicotomia entre posse direta e posse indireta.[1] Savigny foi seguramente um dos principais defensores da categoria da detenção.
Uma vez que o direito brasileiro adotou a diferença entre posse direta e indireta – que é estranha à obra de Savigny – e reteve o conceito de detenção, as lições do tratadista alemão quanto a esse particular parecem ser mais relevantes para a compreensão do direito brasileiro do que para a do direito alemão. Afinal, a doutrina alemã hodierna entende que a detenção já não é mais instituto jurídico, o que implica, inclusive, que até a posse daquele que rouba ou furta merece algum tipo de tutela jurídica.[2]
Essa posição parece ser insustentável no direito brasileiro, já que incompatível com o art. 1.208 do CC. Atualmente, o Gewahrsam – que é o que mais se aproximaria do que chamamos no Brasil de detenção – é tomado, no direito civil e na execução civil alemães, como sinônimo de posse direta.[3] Portanto, não obstante a semelhança entre os ordenamentos jurídicos alemão e brasileiro no que se refere ao direito das coisas, não há a figura da detenção no direito alemão hodierno.
Tudo leva a crer que o conceito de detenção foi mantido no Código Civil de 2002 por influência de Moreira Alves, ainda que ele não tenha sido o responsável pela elaboração do livro III do Código Civil – referente ao direito das coisas –, mas sim pela do livro I – que corresponde à parte geral.[4]
Para Savigny, a detenção seria uma posse juridicamente desvalorizada; uma posse natural (naturalis possessio), e não jurídica (ciuilis possessio). Com efeito, a mera detenção não se qualifica para a usucapião, tampouco para a proteção por meio de interditos proibitórios.[5] O controle fático sobre a coisa obtido por meio de força, clandestinidade ou precariedade (vi, clam vel precario) não é posse jurídica, mas apenas posse natural; em regra, ela não recebe qualquer proteção jurídica. Nesse contexto, a posição de Savigny pode ser instrumental para resolver a aparente antinomia entre o art. 1.200 do CC – que diz ser justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária – e o art. 1.208 do CC – segundo o qual não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância, nem autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.
É plausível concluir – junto com Savigny – que posse justa (iusta possessio) é toda detenção que não apresenta violência, clandestinidade ou precariedade.[6] Porém, a detenção que apresenta pelo menos uma dessas características é mera detenção; e não posse, nem direta nem indireta. É possível estar de posse (in possessione) sem possuir (non possidet), porquanto o primeiro termo se refere à posse meramente natural; o segundo, à posse jurídica, ou seja, aquela posse natural que é reconhecida pelo direito. Esse é um dos motivos pelos quais a res furtiua não pode ser usucapida, já que o ladrão passa a estar de posse do bem à força.[7] Ele é mero detentor do bem, portanto.
Não se pode admitir, no direito brasileiro, que o detentor possa unilateralmente alterar a natureza de sua relação com o bem detido. Insista-se: o detentor não pode alterar por conta própria a sua situação jurídica e tornar-se possuidor unilateralmente. Esse fato leva à conclusão de que a mera detenção só vira posse quando cessarem todos os atos de violência, clandestinidade ou precariedade.
Não se trata simplesmente de exigir animus domini por parte do detentor, porque (1) esse critério é insuficiente para solucionar o problema; (2) não é objetivo; (3) e não foi adotado, em regra, pelo Código Civil brasileiro. Em outras palavras, as lições de Savigny quanto à detenção ainda são bastante atuais para o direito civil brasileiro, embora suas soluções baseadas no animus domini devam ser colocadas de lado, porquanto o Código Civil adotou uma teoria predominantemente objetiva da posse – diga-se predominantemente, porque a teoria subjetiva de Savigny ainda é utilizada em alguns casos, notadamente na usucapião.
Os critérios para que a mera detenção passe a ser posse devem ser exclusivamente os seguintes:

1)   No caso de clandestinidade, é necessário que o detentor pare de esconder que o bem não é seu e que foi obtido de maneira subreptícia; que assuma publicamente a origem do bem, sob pena de permanecer em situação clandestina.

2)   No caso de violência, é necessário que o legítimo possuidor abandone o bem, abstendo-se completamente de buscá-lo ou de tentar reavê-lo, ou que seja violentamente repelido ao tentar recuperá-lo.

3)   No caso de precariedade, é necessário que algum negócio jurídico válido e juridicamente embasado transforme a condição jurídica do detentor, transformando-o em possuidor.

É de perceber-se que os critérios assinalados acima são integralmente compatíveis com o Código Civil e com o que já se decide em casos semelhantes. É certo que esses critérios dificultarão que a mera detenção passe a ser posse, mas essa é a finalidade dos arts. 1.198, 1.200 e 1.208 do CC. Além disso, se o legislador brasileiro optou por manter o instituto jurídico da detenção – ao contrário do que fez o legislador do BGB, por exemplo – foi precisamente para que certas situações de fato não gozassem da mesma proteção jurídica que a posse. É da razão de ser da detenção que a sua convolação em posse só ocorra em casos excepcionais, sob pena de a proteção possessória – com todas as suas várias vantagens, inclusive o manejo de interditos proibitórios – seja concedida a quem não a merece.
É relevante lembrar, por exemplo, que a ocupação de bem público não passa de simples detenção, caso em que se afigura inadmissível a proteção possessória contra a entidade ou órgão público. Esse entendimento é firme e antigo na jurisprudência do STF e do STJ. Com a mesma razão, é necessário aceitar que o poder de fato sobre o bem obtido por meio de violência, clandestinidade ou precariedade não induz posse, salvo, excepcionalmente, nos casos indicados em 1), 2) e 3).



[1] Wilhelm, Jan. Sachenrecht. 4.Auf. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 212.
[2] Wilhelm, Jan. Sachenrecht. 4.Auf. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 216; Baur, Jürgen F.; Stürner, Rolf. Sachenrecht. München: C.H. Beck, 2009. p. 69.
[3] Baur, Jürgen F.; Stürner, Rolf. Sachenrecht. München: C.H. Beck, 2009. p. 69; Wilhelm, Jan. Sachenrecht. 4.Auf. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 223.
[4] cf. Moreira Alves, José Carlos. Posse: Evolução Histórica. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, t. I, 1999. Moreira Alves, José Carlos. Posse: Estudo Dogmático. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, t. II, 1999. Moreira Alves, José Carlos. “A detenção no direito civil brasileiro: conceito e casos”, in Cahali, Yussef Said. Posse e propriedade. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 1-32.
[5] Savigny, Friedrich Carl von. Das Recht des Besitzes. Baden-Baden: Nomos, 2011 [1803], p. 71.
[6] Savigny, Friedrich Carl von. Das Recht des Besitzes. Baden-Baden: Nomos, 2011 [1803], p. 76.
[7] Savigny, Friedrich Carl von. Das Recht des Besitzes. Baden-Baden: Nomos, 2011 [1803], p. 68.

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