Sobre a dupla negação: «não... nenhum»
[Pergunta]
Mesmo depois de ter consultado diversas obras de referência e lido os
vários artigos sobre esta questão no Ciberdúvidas, continuo com dúvidas:
é incorreto escrever «Ele não tem qualquer razão», com o significado de
«Ele não tem nenhuma razão»? É que fico com a sensação de que, na
segunda frase, a existência de dois elementos de caráter negativo (não e nenhuma)
faz com que se anulem um ao outro, à semelhança da matemática, em que
menos por menos dá mais. Assim, será que ao escrever «Ele NÃO tem
NENHUMA razão» não estaremos a dizer que ele tem ALGUMA razão (se não
tem "nenhuma" é porque tem "alguma")? Sei que os puristas são contra
este uso de "qualquer", mas a língua evolui, ou não?
Agradeço a
atenção e aproveito a oportunidade para vos felicitar pelo vosso
magnífico trabalho neste sítio que tão bem defende a nossa amada língua.Manuel Brito :: Tradutor :: Porto, Portugal
[Resposta] Antes de mais, aproveito para agradecer as amáveis palavras do prezado consulente.
Ora, então, vejamos: o pronome indefinido qualquer pode efectivamente ser entendido como sinónimo do pronome indefinido nenhum, pois, como referem Maria Helena Mira Mateus e outros, na Gramática da Língua Portuguesa,
p. 787, «O português possui sintagmas negados cujo valor negativo advém
apenas de estarem no domínio de escopo e sob o foco de um constituinte
intrinsecamente negativo [...] (a) Eu não vi qualquer pessoa na rua». Assim, o pronome qualquer, neste contexto, assume um valor negativo pelo facto de se encontrar sob a influência directa do marcador de negação não,
já que «fora do domínio de escopo dos constituintes negativos,
nomeadamente quando ocorre(m) em posição de sujeito pré-verbal ou
isoladamente, apenas admite(m) uma leitura positiva [...] (a) Qualquer pessoa, por mais maleável que seja, não aceita essas críticas».Contudo, a este propósito, e indo ao encontro da linha de raciocínio exposta pelo nosso consulente, penso que valerá a pena dar conta da seguinte nota veiculada pelo Dicionário Houaiss: «embora de emprego hoje bastante comum no Brasil, a gramática da língua condena o uso de qualquer no lugar de nenhum, ou seja, com o sentido de exclusão, o que ocorre em frases como: embora ferida, não recebeu qualquer ajuda da polícia ou reviu o pai, mas sem qualquer emoção visível». Por outro lado, Cintra e Cunha, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, pp. 358 e 364, quando se referem aos possíveis usos do pronome indefinido qualquer, nada dizem sobre a sua eventual utilização em contextos de valor negativo.
Quanto à segunda parte da questão apresentada pelo prezado consulente, entendo perfeitamente o seu alcance, já que, se dissermos, por exemplo, e quase por absurdo, «Eu não quero não ir à praia», estaremos, na verdade, a dizer «Eu quero ir à praia», pois o segundo marcador de negação não acaba por anular, por assim dizer, o primeiro, transformando, no fundo, a referida frase num enunciado com valor positivo.
No entanto, não deverá ser este o enquadramento a dar à palavra nenhum, pois o referido pronome impessoal deriva do latim nec unu, significando nem um (Fontes: Dicionário Houaiss e Priberam). Aliás, «nem um» é exactamente um dos significados propostos pela generalidade dos dicionários de língua portuguesa de referência consultados para o referido vocábulo. O Dicionário Houaiss especifica ainda que nenhum é «usado para excluir qualquer dos indivíduos da espécie referida pelo substantivo ou pronome a que está ligado».
Deste modo, estão correctas as duas formulações propostas pelo consulente, isto é, «Ele não tem qualquer razão» e Ele não tem nenhuma [nem uma] razão».
Finalmente, a propósito da evolução da língua referida pelo consulente no final da sua questão, penso que terá interesse dizer que, segundo Ana Maria Martins, num artigo intitulado «Aspectos da negação na história das línguas românicas (Da natureza de palavras como nenhum, nada, ninguém)» (in Actas do XII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Braga, Universidade do Minho), 1996, volume II, pp. 179-209), «no latim clássico, palavras como nemo (ninguém), nullus (nenhum) [...] e nihil (nada) funcionavam só por si como marcadores negativos (visíveis) em instâncias de negação proposicional (cf. exs. 1-2). Da sua co-ocorrência com um outro item negativo resultavam proposições afirmativas (cf. exs. 3-4).
1. Mihi neminem dederis (Cícero): Não me dês ninguém;
2. Is nullus venit (Plauto): Ele não veio (mesmo).
3. Nemo non benignus est sui iudex (Séneca): Toda a gente é juiz benigno de si mesma;
4. Quae res etiam non nullam afferebat deformitatem (Plauto): Aquela coisa trazia(-lhe) mesmo alguma fealdade» (p. 179).
Porém, ainda de acordo com a referida linguista, no latim vulgar, já é possível encontrar «estas palavras a co-ocorrer com outros itens negativos em frases que retêm uma interpretação negativa. Esta construção, tradicionalmente chamada dupla negação, atesta-se em autores como Plauto (sécs. III-II a. C.) e Petrónio (séc. I d. C.), bem como em fontes não literárias: Iura te non nociturum... nemini (Plauto): Jura que não farás mal a ninguém; Et nulla fontes aquem non abebat (inscrição tardia de África): E nenhumas fontes tinham água» (p. 180).
A situação do latim vulgar mantém-se, portanto, em época pós-latina, até aos nossos dias, ainda que, num primeiro momento, os referidos pronomes indefinidos + marcadores de negação (= dupla negação) ocorram indiscriminadamente em posição pré e pós-verbal, ex.: «Que nehūu nō scapou nen nehūa cousa que na vyla ouvesse» (Crónica de 1344); «Que avya grande vontade de nō leixar nenhūus do bando de Pompeo (Crónica de 1344) (cf. Ana Maria Martins, op. cit., p. 180).
Só mais tarde, «nas línguas românicas mais inovadoras, como o castelhano, o italiano, o português e o galego, o marcador de negação predicativa deixou de poder ocorrer com um indefinido negativo pré-verbal [...] Ninguém sabe o que se passa/*Ninguém não sabe o que se passa» (ibidem, p. 183). E assim acontece actualmente.
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