Thursday, 2 January 2014

«De forma alguma» e «de forma nenhuma», novamente

«De forma alguma» e «de forma nenhuma», novamente

[Pergunta] Já aqui vi algumas questões como aquela que irei expor, mas a resposta não me parece clara. Desejo ser elucidado de forma conclusiva. Usando a seguinte frase (isolada, sem qualquer contexto) como exemplo, «De forma alguma é azul», estou a negar que é azul, ou estou a dizer que de alguma forma é azul? Se estou correcto (e como vem descrito numa das respostas às questões anteriormente colocadas), só posso usar a expressão «de forma alguma» com sentido de negação quando na mesma sentença ela é acompanhada de uma negação. Ou seja, só poderei negar (utilizando a expressão «de forma alguma») que é azul da seguinte forma: «Não é azul de forma alguma.» De outra maneira, não é possível numa frase isolada fazer uma negação, utilizando apenas a expressão «de forma alguma» (sem outra forma de negação). Inequivocamente pode-se utilizar: «De forma nenhuma é azul.» Que é justamente o contrário de «De forma alguma é azul.»
Numa das questões colocadas: «[Pergunta] Quando nos queremos referir a algo com que, por exemplo, não estamos de acordo, como nos devemos exprimir? "De forma alguma" ou "De forma nenhuma"?
[Resposta] É correcto algum com sentido negativo (= nenhum), quando vem depois de um substantivo. Até o nosso grande Camões o empregou n´Os Lusíadas, I, 71: "Os segredos daquela Eternidade A quem juízo algum não alcançou!"»
Ao contrário do que foi explicado, nenhum não tem qualquer sentido de negação mas, sim, a palavra não, pois, se colocarmos a mesma frase sem o não, ficando «Os segredos daquela Eternidade A quem juízo algum alcançou!», perde-se o sentido de negação, permanecendo a palavra algum e retirando o não. Portanto, algum não influencia a afirmação tornando-a uma negação. O nosso grande Camões nunca utilizou algum ou «de forma alguma» com sentido de negação (felizmente). Não obstante, esta expressão é comummente utilizada como negação e espanta-me como os usuários de um idioma permitem que «uma mentira dita muitas vezes possa tornar-se verdade». Ou seja, estou eu errado de forma alguma!? Ou não estou eu errado de forma alguma?! É de salientar que o não, nenhum, nada, nunca, jamais e outras é que fazem a diferença entre uma negação e uma afirmação. Expressões como «de forma alguma» poderão ser no máximo uma enfatização de uma negação: «Não é azul, de forma alguma.»
Concluindo, ao dizer «De forma alguma é azul», estou exactamente a afirmar que de alguma forma é azul e não a negar que seja azul? Estou correcto quando afirmo que, por si só, a expressão «de  forma alguma» não representa uma negação? Queiram por favor corroborar ou contradizer as minhas declarações utilizando exemplos.
Grato pela atenção.

José Rebelo :: Comunicador :: Lisboa, Portugal

[Resposta] É muito interessante a pergunta que o consulente faz. Respondo já, e depois vou tentar elucidá-lo: com a expressão «de forma alguma é azul», pretende-se dizer que algo não é azul, que não há dúvida de que não é azul, ou seja, pretende-se negar a qualidade azul atribuída seja ao que for.
Para o elucidar, vou focar três assuntos: a questão da contextualização das expressões e das frases, o significado da expressão «de forma nenhuma» e o significado de «de forma alguma».
Primeiro que tudo, é preciso dizer que as frases descontextualizadas não podem ser bem interpretadas. A pragmática ensina-nos que o contexto é determinante. Uma frase (por exemplo: «Vens lindo, meu querido!») pode, num determinado contexto, querer dizer o que os seus termos literalmente significam ou, noutro contexto, pode querer dizer precisamente o contrário. Assim, apresentar a frase «De forma alguma é azul» descontextualizada (de situação ou de texto) significa retirar-lhe elementos essenciais para a sua total compreensão. Por outro lado, esta parece-me uma frase artificial, de realização improvável. Mais natural seria um diálogo como o seguinte:
— Isso é azul?
— Não! De forma alguma!
Passando agora às expressões em causa, não parece haver dúvidas de que a frase «de forma nenhuma é azul» significa que algo não é azul. Mas também esta me parece uma frase artificial. Mais natural seria o diálogo seguinte:
— Isso é azul?
— Não! De forma nenhuma!
Concluindo este segundo assunto, não se questiona que o indefinido nenhum (do latim nec unum = nem um) tenha um valor negativo.
E chegamos ao terceiro assunto, que é, afinal, o que está em causa, o do valor da expressão «de forma alguma». Escreveu o saudoso professor José Neves Henriques que «é correcto algum com sentido negativo (= nenhum), quando vem depois de um substantivo». Em abono desta afirmação, temos, por exemplo, a explicação de Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 359):
«Posposto a um substantivo, algum assumiu, na língua moderna, significação negativa, mais forte do que a expressa por nenhum. Em geral, o indefinido adquire este valor em frases onde já existem formas negativas, como não, nem, sem:
Já não morria naquele dia e não tinha pressa alguma em chegar a casa.
                 (Ferreira de Castro, Obra Completa, II, 694)
    Não escreveu, que eu saiba, livro algum.
                 (Augusto Frederico Schmidt, O Galo Branco, 71-72)»

Reparemos que, em qualquer dos exemplos, o indefinido algum poderia ser substituído por nenhum, este anteposto ao substantivo, e mantendo-se o advérbio de negação: «não tinha nenhuma pressa em chegar a casa»; «não escreveu nenhum livro».
Um exemplo desta construção surge também no adágio «O que não duvida não sabe coisa alguma».
E já n´Os Lusíadas, obra citada na pergunta do consulente, surgem exemplos destes:
    (1) «Nunca juízo algum, alto e profundo,
          Nem cítara sonora ou vivo engenho,
          Te dê por isso fama nem memória». (IV, 102)
    (2) «Mas, como nunca, enfim, meus companheiros
          Palavra sua algũa alcançaram
          Que desse algum sinal do que buscamos,
          As velas dando, as âncoras levamos.» (V, 64)

Evidencio, aqui, então, a importância do contexto, que acima referi. É que, na expressão «de forma alguma», ou está expresso anteriormente ou está subentendido um «não», uma negativa. A expressão «de forma alguma!», dita de forma assertiva como resposta uma pergunta, subentende uma negativa; trata-se da simplificação de uma expressão em que a negativa estaria expressa.
Para terminar, lembro, ainda, que são sinónimos os termos nunca, jamais, em tempo algum: um pormenor da riqueza da nossa língua!

Maria Regina Rocha :: 05/04/2009

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