Recentemente, fui perguntado se o Supremo teria reconhecido normas constitucionais inconstitucionais ao decidir sobre as uniões homoafetivas.
Ele teria negado vigência ao art. 226, parágrafo 3º:
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Eu penso que o Supremo não negou vigência ao dispositivo acima. Tampouco reconheceu, ainda que não-explicitamente, a existência de normas constitucionais inconstitucionais.
O atual presidente do Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht - BVergG), Andreas Voßkuhle, disse, em entrevista recente à emissora de televisão Deutsche Welle[1] que ao BVergG cabe não apenas a guarda ou proteção (Schutz) da Constituição ou Lei Fundamental, mas também desenvolvê-la além, desenvolvê-la mais (weiterentwickeln). Na Alemanha, a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, fala expressamente que o casamento goza de especial proteção do Estado. Até muito recentemente, a doutrina constitucional alemã[2] defendeu que por mais que as uniões registradas (eingetragene Partneschaften), uma espécie de união estável que alcançava uniões homoafetivas, tivessem direitos, elas deveriam sempre gozar de um pouco menos de tutela jurídica do que o casamento. Esse era conhecido como o Abstandsgebot ou Distanzierungsgebot (STERN, Klaus. vol. IV, tomo I, 480p.), isto é, princípio de distanciamento ou espaçamento entre uniões registradas e o casamento.
O BVergG passou por cima disso e disse que a tutela especial do casamento não impede que outras entidades familiares sejam também objeto de tutela especial, desde que a tutela especial, reforçada, do casamento não seja colocada de lado. Em outras palavras, é possível nivelar, mas só nivelar por cima, nunca por baixo. Na Alemanha, há plena igualdade (Cf. nota de rodapé "2" abaixo).
Pergunto-me: será que é possível conceber um mundo em que todo e qualquer avanço social e/ou humano seja engessado pela Carta de 88? Seria o mesmo que parar no tempo e congelar qualquer avanço com base na mera literalidade do texto. Nós nunca poderíamos deixar o ano de 1988.
O caráter interpretativo da norma serve, dentre outras coisas, justamente para atualizar o texto legislativo, resolver casos sequer cogitados pelo legislador, etc. Sobretudo quando estamos diante dos direitos fundamentais de uma minoria, há que se reconhecer legitimidade ao Juiz Constitucional para fazer aquilo que o STF fez.
Penso que o constitucionalismo contemporâneo nos mostra que há uma diferença entre maioria e democracia. Segundo Klaus Stern (STERN, Klaus. vol. IV, tomo II, 15p.), a regra da maioria é uma homenagem à liberdade. A idéia é a seguinte: em uma democracia, as pessoas gozam de auto-determinação (Selbstbestimmung). Quando tivermos que tomar uma decisão em conjunto e não houver consenso, respeitar-se-á a decisão da maioria, para que o menor número possível de pessoas seja obrigado a fazer algo contra sua vontade. É esse o fundamento da regra majoritária, onde as decisões respeitam o que determina a maioria.
Às vezes, porém, a maioria toma decisões não democráticas, pois passa completamente por cima da liberdade de uma minoria, seja ela um grupo homogêneo ou não. Sempre que uma decisão majoritária for excessiva e arbitrária e tolher sobremaneira, por motivos não razoáveis, os direitos legítimos de uma minoria, ela estará agindo de maneira antidemocrática. É difícil definir esses limites da ação majoritária, mas os direitos fundamentais certamente são algumas dessas fronteiras, além das quais a vontade do maior número não pode ultrapassar.
Uma maioria contra a democracia: foi o que aconteceu nas eleições de março de 1933, na Alemanha. Enquanto o partido nacional-socialista obteve 43,9 dos votos, a Frente de Luta preta-branca-vermelha, uma coalizão de pequenos partidos de orientação totalitária, alcançou oito por cento, formando, portanto, junto com os nazistas, uma maioria antidemocrática, nacionalista e totalitária.[3] Essa maioria contra a democracia (Mehrheit gegen die Demokratie) possibilitou a ascensão de Hitler ao poder.
A maioria que escolheu o projeto totalitário não tomou uma decisão democrática, justamente por ter escolhido ao arrepio dos direitos considerados fundamentais. Ela passou por cima, ao escolher o partido nazista ou seus correlatos, da intangibilidade física do ser humano, do seu direito à privacidade, inclusive de suas informações, e atropelou o princípio da igualdade, dentre outras coisas.
É importante lembrar que não apenas judeus morreram nos campos de concentração, mas também homossexuais e ciganos. Em Berlin, diga-se de passagem, em frente ao Memorial para os Judeus Mortos da Europa (Denkmal für die ermordeten Juden Europas), há também um Memorial para os homossexuais perseguidos no Nazismo (Denkmal für die im Nationalsozialismus verfolgten Homosexuellen).
Nelson Gonçalves Gomes, professor de Filosofia da Universidade de Brasília, disse-me, muito sabiamente, uma vez que:
“(...) democracia pressupõe maioria, mas maioria não é o mesmo que democracia.
O voto majoritário de 1933 expressou o ponto de vista do eleitorado que escolheu partidos totalitários, com os resultados que conhecemos. É um erro pensar que a escolha majoritária sempre será democrática. Alguns sistemas adotam regras para evitar o tipo e fenômeno que aconteceu na Alemanha na primeira metade dos anos 1930. A proibição de partidos racistas é uma dessas regras que a imprudente República de Weimar nunca assumiu. A democracia fixa limites até mesmo para a expressão da vontade popular, mas não é fácil determinar de maneira consistente que limites sejam esses.”
O voto majoritário de 1933 expressou o ponto de vista do eleitorado que escolheu partidos totalitários, com os resultados que conhecemos. É um erro pensar que a escolha majoritária sempre será democrática. Alguns sistemas adotam regras para evitar o tipo e fenômeno que aconteceu na Alemanha na primeira metade dos anos 1930. A proibição de partidos racistas é uma dessas regras que a imprudente República de Weimar nunca assumiu. A democracia fixa limites até mesmo para a expressão da vontade popular, mas não é fácil determinar de maneira consistente que limites sejam esses.”
A não-igualdade do tratamento de uniões homoafetivas e uniões estáveis fere a democracia e é inconstitucional. Isso vai de encontro a garantias fundamentais, como a igualdade, a vedação de discriminações odiosas, e a liberdade.
Quando a maioria não sabe respeitar o semelhante, cabe à Jurisdição Constitucional impor tal respeito. Não sabemos ao certo, de maneira consistente, quais os limites exatos que se deve impor à vontade da maioria – talvez isso só possa ser aferido casuísticamente, mas é certo que a democracia fixa “(...) limites até mesmo para a expressão da vontade popular.”
O Supremo Tribunal Federal reconheceu um desses limites em sua mais nova decisão.
[1] http://www.youtube.com/watch?v=DHmcRAmsWb4
[2] Dois dos maiores constitucionalistas alemães (Klaus Stern e Michael Kloepfer), por exemplo, defendiam isso até ficarem estupefactos com a decisão do Tribunal de igualar completamente as uniões homoafetivas e o casamento, concendendo completa igualdade, não apenas em direito de família, inclusive adoção, mas todos os benefícios tributários e sucessórios (Ressalte-se que, na minha opinião, ao arrepio da mens legis do 226, parágrafo 3º, da CF, a sucessão de companheiro supérstite é diferente da do cônjuge supérstite. Na Alemanha, não.) Entre as decisões que acabaram com o tratamento desigual, podemos incluir BVerfG, 1 BvR 1164/07 de 7.7.2009 e BVerG, 1 BvR 611/07 de 21.7.2010, que terminou de conferir integral igualdade às duas situações. Note que são decisões recentes. Nós não estamos muito atrás nesse ponto (pelo menos não juridícamente, porque a homofobia aqui é absurdamente maior do que na Alemanha, enquanto sociedade).
[3] "Bei den Wahlen vom 5.Marz 1993 erhielt die NSDAP 43,9 Prozent der Stimmen, die antidemokratische und nationalistische "Kampffront Schwarz-Weiss-Rot" (DNVP und andere Gruppen) erhielt 8 Prozent." (Cf. BERGMANN, Klaus et alii. Geschichte und Geschehen. (Baden-Württemberg; Band 4.) Leipzig, Stuttgart u. Düsseldorf: Ernst Klett Verlag, 2003. 79p.)
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