ESTUDO DIRIGIDO
FOUCAULT, Michel. “Instituições completas e austeras”, in Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 36ª ed. Petrópolis, Vozes, 2009. 217-242pp.
Surveiller et punir já se tornou uma obra célebre. O objeto deste trabalho é o capítulo intitulado Instituições completas e austeras (no original, Des institutions complètes et austères). Com base nas instruções deste estudo dirigido, tentaremos realizar as tarefas propostas satisfatoriamente.
Tema Central e Síntese
Foucault traça uma espécie de genealogia da prisão e mostra como ela possui um poder total sobre os indivíduos. Trata-se de uma instituição "omni-disciplinar," uma reforma completa da personalidade. E esse fato assume diversas formas. Em primeiro lugar, temos o isolamento em face de outros prisioneiros e do mundo. Segundamente, de facto, non de iure, impõe-se ao preso o trabalho, com base no regulamento do tempo do prisioneiro e da vida nas prisões. Foucault fala ainda, neste ponto, da passagem do tempo na prisão como um elemento segregador e punitivo. Terceiramente, a prisão é o instrumento para a modulação da pena. Ela assume a operação da sentença ao executá-la e toma formas próprias, a ponto de ser um universo hermético em si mesmo. Sem embargo, a qualidade e a duração da detenção são determinadas pela prisão, não pelo crime. A prisão supervisiona a moral do preso depois do crime, que excede à própria detenção, porque é também um workshop e um hospital, onde a cura e a normalização supostamente ocorrerão. Tal amálgama escabroso, tal combinação é conhecida como a penitenciária.
Esses acréscimos à prisão não são facilmente aceitos, a despeito da idéia de que a prisão não deve ser mais do que uma privação de liberdade. Prisão é o lugar de observação do indivíduo, uma questão de vigilância e de conhecimento. Para isso, Foucault diz no final do trecho, a maioria das prisões é modelada conforme o panóptico. Naturalmente, isso será melhor explicado no capítulo específico destinado ao panóptico. A natureza vigiadora da prisão já assume seus contornos aqui e, nesse diapasão, dá razão de ser à estrutura do panóptico.
Para Foucault, como o corpo torturado do criminoso desapareceu, a alma do delinqüente apareceu. Isso é contextualmente entendido com base nos capítulos anteriores do livro, dedicados à tortura. Ele quer dizer que a prisão suplantou a tortura e, com base nese “método civilizado de punição”, foram criados, presumidamente, mecanismos adequados para poder disciplinar. A prisão, porquanto, é o lugar em que a punição é organizada em silêncio como um tratamento, que então se torna parte do conhecimento privilegiado de uma parte da sociedade. As ciências penais e o aparato do Judiciário, nesse sentido, de alguma forma se escondem atrás das leis e dispositivos legais e corroboram o sistema.
Conclusões do autor
Foucault aponta para a crueldade do sistema prisional e para a desumanização no preso. Supostamente, a prisão foi um avanço em face da tortura e de outras penas corporais e vexatórias, mormente em virtude da implementação de teses idealistas. Contudo, para o filósofo francês, o sistema está a “(...) fazer da prisão um local de constituição de um saber que deve servir de princípio regulador.”[1]
Isso não apenas torna a prisão um universo fechado em si mesmo, como trata de reproduzir as estruturas sociais na própria prisão que, alegadamente, deveria socializar o preso. Isso se dá, ademais, de forma exasperada, porque ocorre com base na vigilância constante e na punição que é exercida por direito próprio (sui iuris), tendo pouca ou nenhuma relação com a pena ela própria. Fala-se, porquanto, segundo Foucault, de uma instituição voltada para a anulação da individualidade, reprodutora das relações de poder que em primeiro lugar podem ter causado o fato punível e que faz com que “A técnica penitenciária e o homem delinqüente” sejam “de algum modo irmãos gêmeos.”[2]
Conclusões do leitor
Não é a primeira vez que leio Vigiar e Punir. Hoje, tenho uma visão um pouco diferente de outrora. Talvez a influência de Kant faça com que entenda a punição, não, necessariamente, como um injusto. Ao contrário, a punição pode, quando devidamente aplicada, significar respeito ao infrator. Quer dizer tratá-lo como um fim em si mesmo. Ao invés da indiferença, a hostilidade, assim como os sentimentos positivos, pode resultar no tratamento do sujeito enquanto alguém que possui deveres e direitos, enquanto alguém capaz de se autodeterminar, pois dotado da autonomia da vontade (Autonomie des Willens). O infrator escolhe realizar certos atos. Todavia, como Onora O’Neill[3], a ilustre kantiana contemporânea, membro da House of Lords, adverte, não somos sujeitos racionais puramente, nem completamente determinados em bases a priori. Fatos empíricos repercutem na ética. Somos determinados não apenas a priori, mas também a posteriori. Não é razoável supor o contrário. Logo, a autonomia do sujeito deve ser vista à luz de nossas capacidades finitas. É o que o direito do trabalho já faz. Não há como se dizer que o trabalhador que celebra contrato com cláusulas abusivas aquiesceu, assentiu. Ele o fez, on pain of starvation. Logo, sua autonomia se encontrava tolhida. Este é um ponto a ser levado em conta, uma adaptação a Kant que se faz mister acrescentar.
Por outro lado, certamente, não estão com razão aqueles que pensam que prender uma segunda vez é sempre errado. Zaffaroni chegou a defender, num determinado momento, que, se alguém é preso e, depois de solto, volta a delinquir, então ele não poderia ser preso. Isso porque se a pena só tem finalidade preventiva e ela não funcionou uma vez, não adiantaria prendê-lo de novo, pois ela não serviria ao seu propósito preventivo.
A pena pode ser bastante efetiva e o Estado pode fazer tudo que está ao seu alcance e, ainda assim, um determinado indivíduo reincidir. Faz parte, inclusive, da sua autonomia, e da sua aptidão para escolhas. E é bom que ele possa decidir como agirá, do contrário estaríamos diante de uma lamentável e escabrosa realidade digna de A Clockwork Orange (Laranja Mecânica), o filme de Stanley Kubrick.
O problema das prisões, ao contrário do afirmado por Foucault, não está nelas próprias, é dizer, as prisões não precisam ser simplesmente extintas, mas sim tratar os presos como sujeitos, é necessário lhes dar respeito e impor deveres. Assim como, outrossim, o Estado deve fazê-lo antes de prender o jovem.
Ao invés de só exigir que o mancebo não crimine, é preciso dar condições para que todos os indivíduos tenham opções de vida dignas. Não tenho dúvidas de que as prisões brasileiras e a sociedade brasileira são desumanas e de que não tratam seus membros como cidadãs e cidadãos. Entretanto, o problema não está, como quer Foucault, no aspecto estrutural das prisões, tomadas enquanto tais, mas na forma que elas se dão atualmente, mormente neste país. Muitas prisões francesas ou alemãs de hoje não padecem, a meu ver, de tantos problemas quanto as daqui. Talvez, Foucault diria que sim, se estivesse vivo. Está aqui nossa divergência. Punição e vigilância não são inexoravelmente ruins e antiéticos. Podem significar respeito em face de alguém que violou uma regra e que, por isso, deve ser punido. Em síntese, a prisão não é, necessariamente, “uma cela fechada, um sepulcro provisório”[4], como Foucault parece tentar defender.
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