Resenha Crítica
Filme: O prisioneiro da grade de ferro
O filme relata, ainda que não concentradamente, a vida de diversos prisioneiros. Celso Pereira de Alburqueira Jonas de Freitas Lins, José Eliano da Silva, Rubens Lima da Silva, João Vicente Lopes, são alguns deles. Somos levados a diversos âmbitos da vida em reclusão.
No filme, o Rap, a religião, e outras atividades são mostradas como tentativas de tornar a vida na prisão um pouco menos desagradável. Trata-se, mormente, de um esforço para transformar a vida na prisão em algo um pouquinho mais semelhante à vida fora dela. As formas de destilar cachaça, a precariedade das medidas profiláticas, dentre tantas outras coisas, mostram a dificuldade de empreender esta tarefa. Supostamente, o filme deveria ser um auto-retrato. Todavia, nesse ponto ele deixa a desejar. A meu ver, permanece a sensação de que o retrato não é sincero, completo. Sentimo-nos, ainda, de fora, estranhos. Os atos de violência são citados, fotos são mostradas, mas nada é filmado. Tem-se, ainda, a sensação de que só se mostra o que se pode, de que há muito ali que não é mostrado. Um auto-retrato do preso é algo como tornar-se preso por duas horas. É ver aquilo que só eles vêem, sem cortes, sem pudores, sem censuras.
A passagem dos ratos, em que os presos mostram a enxurrada de camundongos em meio aos quais eles vivem, lembra um livro de Véronique Vasseur. Em 2000, ela publicou Médecin-chef à la prison de la santé, explicando os horrores da prisão La Santé. Nele, ela retrata como os presos eram obrigados a usar suas próprias vestes para tampar buracos nas paredes das celas, a fim de evitar a entrada de ratos. Os demais insetos eram onipresentes. E, por fim, os presos mais fortes estupravam e violavam de diversas formas os mais fracos, tornando-os seus escravos, para realizar diversas tarefas e afazeres. Apenas em 1999, 124 presos se mataram na prisão La Santé.
Os presos do carandiru também vivem em meio a ratos. Salta aos olhos, por exemplo, a AIDS e o pavilhão em separado dos homossexuais. Pouco foi falado sobre isso. As relações afetivas dos presos também foram pouco exploradas.
Fica evidenciado pelo filme que o carandiru era tudo menos um ambiente de ressocialização. Privando os presos de pequenos prazeres, de atividades mínimas que dêem a eles a sensação de não estarem presos, relega-se aos presos um “salve-se quem puder”. O universo da prisão passa a ter regras próprias e o preso a viver sob ditames alheios ao que prega o Estado.
Se roubar é proibido e se por isso o réu se torna preso, pouco dessa regra vale lá. Temos hoje um sistema carcerário que faz tudo menos mostrar ao preso as vantagens ou, ao menos, as desvantagens de violar regras. O preso ainda é tratado de maneira paternalista. No filme, fica claro o caráter pífio dos livros que estão à disposição dos presos. Não há estrutura para que eles retomem suas vidas.
Por outro lado, sendo a prisão um universo hermético, enclausurado em si mesmo, abandona-se àquele que está cumprindo pena, de modo que ele, dependente da própria sorte, é obrigado, mais dentro do que fora, a transgredir para sobreviver. Será razoável pregar princípios éticos dentre de uma instituição que não os respeita? Será, ademais, exigível a observância de determinadas regras de conduta frente àquele que, ao tentar cumpri-las, coloca em risco sua própria vida? Ela diz ao preso que ele não pode roubar e que por isso é punido, mas ela impede que presos roubem uns dos outros, que se agridam, que violentem uns aos outros?
O Xadrez 209 é o retrato de uma sociedade que retira o infrator do convívio social para jogá-lo em meio ao caos. A falta de autonomia, a ausência da possibilidade de desenvolver as próprias habilidades, a crueldade e animosidade entre os guardas e os presos e dos presos entre si demonstram o quanto as prisões brasileiras carecem de fundamentos teleológicos e axiológicos.
Logo ao entrar na prisão, todos já são informados: não há trabalho para todos. A pergunta que se deve colocar é: será possível ser digno numa prisão indigna? Não se aprende nada de proveitoso, nenhum ofício ou mister a poder ser utilizado no futuro. O preso sairá não apenas como entrou na prisão, mas pior do que quando o fez. Não é em vão que o palestrante do carandiru diz que seria puro sadismo desejar, aos recém-chegados ao presídio, boas-vindas. Na verdade, na prisão não se respeita os mínimos pressupostos de convivência conjunta (Mindestbedingungen des Zusammenlebens, como diz o penalista alemão, radicado na Suiça, Günter Stratenwerth). Se o preso já não sabia respeitar as regras de direito penal, não é na prisão que o aprenderá. Lá, ele verá a vida na sua crueldade e rudeza mais absolutas. Viverá momentos agonizantes. E viverá, como criticava Saramago, cada vez mais completamente como um animal e menos como um ser-humano. É essa a prisão que nós cultivamos e que custeamos, onerosa e dispendiosamente. O mais caro desse preço, no entanto, nós não pagamos em dinheiro, nem em tributos. Mas sim por meio das altas taxas de reincidência e dos crimes que se multiplicam assim como as cadeias. O exercício do poder punitivo, nos moldes como implementados aqui, são não apenas não-eficientes, como extremamente irracionais e contra-produtivos. Eles parecem agravar boa parte do quadro negativo que se nos apresenta e não o contrário.
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