Friday, 3 December 2010

Um pedaço de sanduíche na cozinha - Pessimismo filosófico fenomenológico


Deixei um pedaço de sanduíche, quase todo comido, e, portanto, muito pequeno, numa parte da cozinha. Não tinha notado que o deixara lá. Dois dias depois, quando o notei, por acaso, ele está podre, completamente preto e com, pelo menos, 40 larvas. É absurdo quanto a vida é abjeta e obstinada. Duas perigosas características. Alçamos a vida a valor maior, a ápice de nobreza, quando, na verdade, ela não é assim, mas é tornada assim  por nós. Agarramo-nos a ela tenazmente, mesmo quando ela é completamente vil, podre, asquerosa, repulsiva.

David Benatar, me parece, escreve muito bem sobre como tendemos a dizer que, supostamente, nos recusaríamos a viver em determinada circunstância "x", pois alegadamente "x" tornaria a vida insustentável, porém, quando somos submetidos a "x", em regra, nos adaptamos.
Ser paraplégico é um exemplo de "x". Muitos dizem que se fossem obrigados a viver em uma cadeira de rodas a vida se tornaria completamente intolerável, porém, não é o que ocorre na prática. De fato, as pessoas se adequam aos males mais diversos que a vida impõe, por mais graves que eles sejam.
Nesse sentido, há inúmeros exemplos de "x", como, p.ex., aqueles milhares de homens e mulheres que vivem, literalmente, no lixo, como as larvas que eu mencionei, obtendo o sustento dos restos despejados em grandes lixões. O documentário Ilha das Flores, de Jorge Furtado, e o poema O Bicho, de Manuel Bandeira[1], não me deixam mentir.

Há que se mencionar, igualmente, aquela grande maioria que, durante a segunda guerra mundial, mesmo em campos de concentração, em condições ditas subumanas, não cometeu suicídio. Ou ainda, o 1.4 bilhão de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, em situação de franca derrelição e miserabilidade, que, mesmo em um país rico, como os EUA, assomam, espantosamente, aproximadamente, 44 milhões e, na Índia, 410 milhões. É desnecessário dizer, por exemplo, que essas pessoas têm o mais precário, quase nulo, acesso à saúde, à educação, à alimentação, à habitação e que, estão expostos aos mais diversos tipos de violência e de vulnerabilidade.

Ainda assim, eles vivem e escolhem viver, irresignadamente, como se o mero ser, como se mero viver, tivesse valor intrínseco a ele, como a se a mera possibilidade, ainda que remota, de um dia a situação ficar um pouco menos pior fosse capaz de motivar a quantidade infindável e interminável de penúrias pelas quais essas pessoas passam.
O paradoxal de tudo isso é que nossas vidas, as vidas “medianas”, consideradas boas, não são nem de perto tão boas quanto assume a maioria das pessoas.
Tentamos, no fundo, precariamente, diminuir, atenuar os males da vida, evitar males graves e desnecessários, tomando precauções, inventando medicamentos mais eficientes, implementando medidas de higiene, etc. Ao mesmo tempo em que buscamos, de maneira supérflua, maximizar, tanto quanto possível, os prazeres. A mentalidade das pessoas é hedonista ao extremo e não se dão conta elas de quão residual é nossa condição. Nossas vidas, mesmo as menos piores, continuam sendo muito ruins e, ademais, a volubilidade da Fortuna, cruel como é, está sempre à espreita, pronta para demolir nossas frágeis conquistas. Em realidade, continuamos a viver num bueiro, num pedaço podre de carne (i.e. o planeta terra), sugando dele tudo o que pode oferecer, produzindo, literalmente, quilos de lixo por dia[2] e toneladas por ano, por pessoa, e, mesmo assim, teimamos em achar que está tudo perfeitamente bem apenas por tornarmos a latrina um pouco menos repugnante.
Comer, defecar, adoecer, passar horas realizando tarefas banais e idiotas, como andar de carro, em mero deslocamento, tomar banho, escovar os dentes, dormir horas e horas por dia inutilmente, são tarefas inteiramente sem serventia, imprestáveis, que não valem de nada. São ruins, desagradáveis, residuais (como bem as chamou Cabrera), porém, realizadas única e exclusivamente porque nos submetemos ao quão ruim a vida é. Passamos a maior parte de nossas vidas realizando ações desse tipo, sem qualquer valor para nós e continuamos defendendo, equivocadamente, que vale a pena viver. Essas ações, como também mostrou Benatar são, outrossim, negligenciadas, só porque são males que, ainda que graves, permeiam as vidas de todos nós, como se isso anulasse ou neutralizasse a gravidade dessas nefastas tarefas do nosso morrer cotidiano.



[1] O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

[2] Cada pessoa produz, em média, pelo menos 2 quilos de lixo por dia.

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