Monday, 12 December 2011

Desconsideração Inversa da Pessoa Jurídica na Alemanha



É possível desconsiderar a autonomia da personalidade jurídica para responsabilizá-la por obrigações assumidas por seus sócios. Trata-se da desconstituição inversa da personalidade, que é instituto utilizado em diversos países do mundo. Nos EUA e na Alemanha, por exemplo, desde há muito, é possível desconsiderar a personalidade jurídica (nos EUA, disregard of legal entity; na Alemanha, Durchgriff der juristischen Person), mas também há tempos é aceita a desconsideração inversa (nos EUA, reversed assignment of liability; na Alemanha, umgekehrter Durchgriff der juristischen Person).
Note-se que, na Alemanha, a desconsideração é aplicável, em especial, às sociedades limitadas, haja vista serem sociedades com capital não tão vultoso quanto uma sociedade anônima e que, diferentemente das sociedades em nome coletivo (offene Handelsgesellschaft), gozam de autonomia patrimonial, o que pode ser facilmente desvirtuado pelos sócios, a fim de favorecer interesses particulares e escusos.[1]
Segundo o enunciado 283 da Jornada de Direito Civil, por exemplo, é “(...) cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiro.”
O exercício dos direitos subjetivos, como é ressabido, possui limites e a boa-fé objetiva (art. 113 do CC) é um deles. Portanto, o abuso da autonomia patrimonial conferido às sociedades empresárias e, mais recentemente, à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) (art. 980-A do CC), não pode receber proteção do Poder Judiciário, que dever coibir esse tipo de desvio de finalidade.
Assinale-se, outrossim, que a desconsideração é episódica e temporária. Logo, a desconsideração da pessoa jurídica ou mesmo a desconsideração inversa não se confunde, em absoluto, com a despersonificação da pessoa jurídica.
Se um sócio oculta ostensivamente seus bens  por meio de um dada sociedade, que serve apenas a um propósito, nomeadamente, o encobrimento e a dissimulação de seus bens pessoais por trás do véu empresarial (corporate veil) que separa o patrimônio da sociedade daquele que é de seus sócios, então é forçoso desconsiderar a pessoa jurídica e responsabilizá-la pelas dívidas contraídas pelo sócio.
Vale mencionar, outrossim, sobre a própria desconsideração da pessoa jurídica, que a assim chamada teoria maior da desconsideração divide-se em teoria maior objetiva e teoria maior subjetiva. Essa classificação, ao que consta, é criação da doutrina brasileira e não se encontra na literatura alemã sobre o tema. A primeira teoria - maior objetiva - não exige intenção fraudulenta como pressuposto para a desconsideração do véu empresarial, bastando o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, por exemplo. A segunda - teoria maior subjetiva - requer prova de que havia, no caso em tela, vontade consciente no sentido de fraudar a lei ou desvirtuar a autonomia societária.
Na sua pioneira monografia sobre o tema, Rolf Serick já defendia que a desconsideração prescindisse de elemento subjetivo por parte do sócio. Para o autor, tratava-se, precipuamente, de vedar um caso particular de abuso de direito. Logo, toda vez que a autonomia patrimonial societária fosse usada para a perseguição de fins para os quais não foi criada, poder-se-ia desconsiderar a personalidade jurídica.
Serick é claro ao dizer que o mero inadimplemento não pode ser suficiente para a desconsideração da pessoa jurídica. Por outro lado, para o autor, uma sociedade só merece o reconhecimento de sua autonomia patrimonial, quando ela utiliza tal autonomia dentro dos limites e fins para os quais ela foi criada.
Trata-se de observar a própria função social e normativa em razão da qual a sociedade adquire sua forma jurídica dotada de autonomia patrimonial. Rolf Serick assevera, por exemplo, que "Denn die Korporation verdient als solche nur Anerkennung, wenn sie sich innerhalb der Zwecke bewegt, für die sie geschaffen ist." (SERICK, Rolf. Rechtsform und Realität juristischer Personen. Tübingen: Mohr Siebeck, 1980. p. 204)
A teoria de Serick já não é mais adotada, na Alemanha, tal como foi formulada. A desconsideração da pessoa jurídica passou por uma série de mudanças conceituais, as quais não podem ser, nesse momento, descritas em pormenor.
Mencione-se, contudo, que o BGH foi responsável pela criação de uma teoria em parte nova para explicar a desconsideração da pessoa jurídica (cf. (BGH 151, 181ff.). Segundo aquela Corte alemã, a responsabilidade por penetração (Durchgriffshaftung) deve ser entendida como uma responsabilidade em virtude de intervenção que destrói a existência [da sociedade] (Haftung wegen existenzvernichtenden Eingriffs).
Nesse sentido, quando uma sociedade é privada dos bens necessários para o cumprimento de obrigações anteriormente pactuadas ou quando há um enfraquecimento acentuado da capacidade de a sociedade honrar suas obrigações, a sociedade perde os pressupostos de sua própria existência. Os sócios acabam ingerindo ou intervindo na sociedade de modo a acabar, de facto, com a sua existência hígida ou conforme o direito. Por conseguinte, nada mais natural que o próprio Judiciário, reconhecendo essa desnaturação do uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, afaste tal autonomia no caso de inadimplemento de obrigações.
O Tribunal entende que a autonomia patrimonial e a responsabilidade limitada têm por pressuposto que os bens necessários para o cumprimento de obrigações assumidas pela sociedade irão permanecer afetados às finalidades da sociedade e, porquanto, à satisfação de seus credores.
Há uma diferença sutil entre isso e desconsideração da personalidade jurídica sempre que isso prejudicar os credores. Segundo o Tribunal, sempre que bens são retirados da sociedade de maneira contrária à finalidade social da empresa, visando, ainda que sem intenção fraudulenta, a prejudicar os credores, há uma mistura patrimonial que autoriza a inobservância do princípio da separação (Trennungsprinzip).
Com efeito, a confusão patrimonial (Vermögensvermischung) ainda faz parte, ainda que de maneira diversa, da posição prevalecente na jurisprudência alemã. Ela compõe o suporte fático (Tatbestand) da desconsideração da personalidade jurídica.
A separação ou isolamento patrimonial e o comprometimento com os fins da pessoa jurídica são prerrequisitos inafastáveis para que o sócio tenha a pretensão  de limitar a sua responsabilidade societária aos bens da sociedade (EISENHARDT, Ulrich; WACKERBARTH, Ulrich. Gesellschaftsrecht I. Recht der Personengesellschaften: Mit Grundzügen des GmbH- und des Aktienrechts. München: C.F. Müller, 2011. p. 284-286)
O mesmo raciocinío aplica-se, mutatis mutandis, à desconsideração inversa da personalidade jurídica.




[1] EISENHARDT, Ulrich; WACKERBARTH, Ulrich. Gesellschaftsrecht I. Recht der Personengesellschaften: Mit Grundzügen des GmbH- und des Aktienrechts. München: C.F. Müller, 2011. 283ss. E também: MEDICUS, Dieter. Allgemeiner Teil des BGB. 10. Auf. München: C.F. Müller, 2010. 1105p.

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