É possível desconsiderar a autonomia da personalidade
jurídica para responsabilizá-la por obrigações assumidas por seus sócios.
Trata-se da desconstituição inversa da personalidade, que é instituto utilizado
em diversos países do mundo. Nos EUA e na Alemanha, por exemplo, desde há muito,
é possível desconsiderar a personalidade jurídica (nos EUA, disregard of
legal entity; na Alemanha, Durchgriff der juristischen Person), mas
também há tempos é aceita a desconsideração inversa (nos EUA, reversed
assignment of liability; na Alemanha, umgekehrter Durchgriff der
juristischen Person).
Note-se que, na Alemanha, a desconsideração é aplicável, em
especial, às sociedades limitadas, haja vista serem sociedades com capital não
tão vultoso quanto uma sociedade anônima e que, diferentemente das sociedades em nome coletivo (offene Handelsgesellschaft), gozam de
autonomia patrimonial, o que pode ser facilmente desvirtuado pelos sócios, a
fim de favorecer interesses particulares e escusos.[1]
Segundo o enunciado 283 da Jornada de Direito Civil, por
exemplo, é “(...) cabível a desconsideração da personalidade jurídica
denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa
jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiro.”
O exercício dos direitos subjetivos, como é ressabido,
possui limites e a boa-fé objetiva (art. 113 do CC) é um deles. Portanto, o
abuso da autonomia patrimonial conferido às sociedades empresárias e, mais
recentemente, à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) (art.
980-A do CC), não pode receber proteção do Poder Judiciário, que dever coibir
esse tipo de desvio de finalidade.
Assinale-se, outrossim, que a desconsideração é episódica e
temporária. Logo, a desconsideração da pessoa jurídica ou mesmo a
desconsideração inversa não se confunde, em absoluto, com a despersonificação
da pessoa jurídica.
Se um sócio oculta ostensivamente seus bens por meio
de um dada sociedade, que serve apenas a um propósito, nomeadamente, o
encobrimento e a dissimulação de seus bens pessoais por trás do véu empresarial
(corporate veil) que separa o patrimônio da sociedade daquele que é de
seus sócios, então é forçoso desconsiderar a pessoa jurídica e
responsabilizá-la pelas dívidas contraídas pelo sócio.
Vale mencionar, outrossim, sobre a própria desconsideração da pessoa jurídica, que a assim chamada teoria maior da desconsideração divide-se em
teoria maior objetiva e teoria maior subjetiva. Essa classificação, ao que
consta, é criação da doutrina brasileira e não se encontra na literatura alemã
sobre o tema. A primeira teoria - maior objetiva - não exige intenção
fraudulenta como pressuposto para a desconsideração do véu empresarial,
bastando o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, por exemplo. A
segunda - teoria maior subjetiva - requer prova de que havia, no caso em tela,
vontade consciente no sentido de fraudar a lei ou desvirtuar a autonomia
societária.
Na sua pioneira monografia sobre o tema, Rolf Serick já
defendia que a desconsideração prescindisse de elemento subjetivo por parte do
sócio. Para o autor, tratava-se, precipuamente, de vedar um caso particular de
abuso de direito. Logo, toda vez que a autonomia patrimonial societária fosse
usada para a perseguição de fins para os quais não foi criada, poder-se-ia
desconsiderar a personalidade jurídica.
Serick é claro ao dizer que o mero inadimplemento não pode
ser suficiente para a desconsideração da pessoa jurídica. Por outro lado, para
o autor, uma sociedade só merece o reconhecimento de sua autonomia patrimonial,
quando ela utiliza tal autonomia dentro dos limites e fins para os quais ela
foi criada.
Trata-se de observar a própria função social e normativa em razão da qual a sociedade adquire sua forma jurídica dotada de autonomia patrimonial. Rolf Serick
assevera, por exemplo, que "Denn die Korporation verdient als solche
nur Anerkennung, wenn sie sich innerhalb der Zwecke bewegt, für die sie
geschaffen ist." (SERICK, Rolf. Rechtsform und Realität juristischer
Personen. Tübingen: Mohr Siebeck, 1980. p. 204)
A teoria de Serick já não é mais adotada, na Alemanha, tal
como foi formulada. A desconsideração da pessoa jurídica passou por uma série
de mudanças conceituais, as quais não podem ser, nesse momento, descritas em
pormenor.
Mencione-se, contudo, que o BGH foi responsável pela criação de uma teoria em parte nova
para explicar a desconsideração da pessoa jurídica (cf. (BGH 151, 181ff.).
Segundo aquela Corte alemã, a responsabilidade por penetração (Durchgriffshaftung)
deve ser entendida como uma responsabilidade em virtude de intervenção que
destrói a existência [da sociedade] (Haftung wegen existenzvernichtenden
Eingriffs).
Nesse sentido, quando uma sociedade é privada dos bens
necessários para o cumprimento de obrigações anteriormente pactuadas ou quando
há um enfraquecimento acentuado da capacidade de a sociedade honrar suas
obrigações, a sociedade perde os pressupostos de sua própria existência. Os
sócios acabam ingerindo ou intervindo na sociedade de modo a acabar, de facto,
com a sua existência hígida ou conforme o direito. Por conseguinte, nada mais natural que o próprio
Judiciário, reconhecendo essa desnaturação do uso da autonomia patrimonial da
pessoa jurídica, afaste tal autonomia no caso de inadimplemento de obrigações.
O Tribunal entende que a autonomia patrimonial e a
responsabilidade limitada têm por pressuposto que os bens necessários para o
cumprimento de obrigações assumidas pela sociedade irão permanecer afetados às
finalidades da sociedade e, porquanto, à satisfação de seus credores.
Há uma diferença sutil entre isso e desconsideração da
personalidade jurídica sempre que isso prejudicar os credores. Segundo o
Tribunal, sempre que bens são retirados da sociedade de maneira contrária à
finalidade social da empresa, visando, ainda que sem intenção fraudulenta, a
prejudicar os credores, há uma mistura patrimonial que autoriza a inobservância
do princípio da separação (Trennungsprinzip).
Com efeito, a confusão patrimonial (Vermögensvermischung)
ainda faz parte, ainda que de maneira diversa, da posição prevalecente na jurisprudência
alemã. Ela compõe o suporte fático (Tatbestand) da desconsideração da
personalidade jurídica.
A separação ou isolamento patrimonial e o comprometimento
com os fins da pessoa jurídica são prerrequisitos inafastáveis para que o sócio
tenha a pretensão de limitar a sua responsabilidade societária aos
bens da sociedade (EISENHARDT,
Ulrich; WACKERBARTH,
Ulrich. Gesellschaftsrecht I. Recht der
Personengesellschaften: Mit Grundzügen des GmbH- und des Aktienrechts. München: C.F.
Müller, 2011. p. 284-286)
O mesmo raciocinío aplica-se, mutatis mutandis, à desconsideração inversa da personalidade jurídica.